quinta-feira, 28 de agosto de 2003

Folha de S.Paulo

REFORMA SOB PRESSÃO

Governo obteve 49 votos a mais que o necessário; mudança na Previdência segue para o Senado

Câmara aprova previdenciária em 2º turno
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
DA AGÊNCIA FOLHA, EM BRASÍLIA

A possibilidade de acordo em torno da reforma tributária acabou contribuindo para que o governo reunisse as condições para aprovar ontem em segundo turno a reforma da Previdência na Câmara dos Deputados por 357 votos a 123, 49 a mais do que o necessário, que era 308. Entregue à Câmara em 30 de abril, o texto segue agora para análise do Senado.

A votação da proposta principal acabou às 19h59. Seis deputados, todos do PT, se abstiveram. As tentativas de alterar o texto, formuladas por meio de destaques dos deputados, foram rejeitadas.

"O Brasil dá um passo à frente na noite de hoje [ontem], um passo para uma Previdência duradoura, sustentável e justa", disse o deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP), líder do governo na Casa.

A exemplo do ocorrido na votação de primeiro turno, no último dia 6, os votos da oposição foram essenciais para a aprovação da proposta. PFL (32) e PSDB (28) contribuíram com 60 votos pró-governo, ou seja, sem eles a reforma não passaria por 11 votos. No primeiro turno, foram 62.

O apoio oposicionista se deve, em grande parte, à pressão dos governadores e à influência do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) -que apóia o Planalto- sobre cerca de 30 deputados da bancada pefelista.

"Não vejo o resultado como uma vitória do governo, a reforma pertence aos governadores, aos prefeitos e também ao presidente. A novidade é que as oposições, hoje, têm espírito público", afirmou José Carlos Aleluia (BA), líder da bancada do PFL.

O governo prescindiria dos votos oposicionistas caso 58 deputados pertencentes aos dez maiores partidos da base não tivessem votado contra a proposta, o que contrariou orientação dos líderes (à exceção do PDT, que, apesar de aliado, orientou voto contra o governo). No primeiro turno, a "traição" ficou em 56 votos.

Proporcionalmente, os aliados que mais patrocinaram votos contra a reforma foram o PDT (46,2% da bancada), o PC do B (36,4%), o PP (28,6%) e o PMDB (25,3%). Havia acordo entre os partidos para não modificar o texto aprovado em primeiro turno, mas problemas relacionados às negociações em torno da proposta tributária levavam o governo a temer retaliações ontem.

No decorrer do dia de ontem, porém, o receio perdeu força devido à promessa de negociação em torno da reforma fiscal.
A reforma mantém a aposentadoria integral e a paridade salarial (reajustes iguais para ativos e inativos) para o atual funcionalismo, mas acaba com esses benefícios para os futuros servidores.

O teto da aposentadoria, tanto no setor público como no privado, passará a ser de R$ 2.400 com a aprovação da reforma. Para ter direito a um rendimento extra, o servidor terá de contribuir para um fundo de pensão. Servidores inativos terão que contribuir com 11% para a faixa que ultrapassar R$ 1.200, para os Estados, e R$ 1.440, para a União.

O texto inicial elaborado pelo Executivo sofreu várias modificações até a votação em primeiro turno devido à pressão do Judiciário, de servidores, da oposição e dos partidos da própria base aliada. Devido às concessões, o governo conseguiu fechar o acordo com os oposicionistas para votar o texto ontem sem a apresentação dos destaques de bancada.

O acordo foi rompido, porém, pelo aliado PDT, que obedeceu à orientação de sua Executiva. Sob a liderança do ex-governador Leonel Brizola, a direção da legenda decidiu determinar que sua bancada tentasse alterar a proposta.

Os pedetistas apresentaram um destaque de bancada propondo que o subteto salarial do funcionalismo nos Estados fosse de 90,25% do salário do ministro do Supremo Tribunal Federal. O texto da reforma prevê três subtetos diferentes, um para cada Poder.

O fato é que os governistas já tinham uma estratégia fechada no dia anterior para minar a ação pedetista. O presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), rejeitou o destaque argumentando que ele era anti-regimental. O partido contestou e alguns deputados disseram que vão recorrer à Justiça contra a decisão. (RANIER BRAGON e FERNANDA KRAKOVICS)

REFORMA AOS PEDAÇOS

Pressão de Estados obriga Planalto a rever projeto aprovado

Governo recua e cria comissão para alterar texto tributário
RAYMUNDO COSTA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
FERNANDA KRAKOVICS
DA AGÊNCIA FOLHA, EM BRASÍLIA

Menos de 24 horas depois de aprovar o texto básico da reforma tributária, o governo cedeu à pressão dos governadores e reabriu negociações para alterar a proposta votada anteontem em comissão especial da Câmara. Com o recuo, o Planalto tenta viabilizar a votação do projeto no plenário já na próxima semana.

Em reunião com 17 governadores e oito representantes dos Estados, o presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), e líderes partidários, foi criada uma comissão paritária com dez integrantes para redigir a proposta de alteração que será levada ao plenário, talvez na próxima quarta-feira.

Em princípio, a comissão, integrada por representantes dos Estados e dos partidos, deveria só alinhavar alguns pedidos dos governadores com os quais o Planalto concorda. Na prática, deve abordar outros temas que contrariaram os Estados no relatório de Virgílio Guimarães (PT-MG), como a definição das alíquotas para operações interestaduais do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

O governo concorda em ceder em dois pontos: a constitucionalização do fundo para compensar os Estados por perdas decorrentes da Lei Kandir (desoneração das exportações) e a cessão de 25% da Cide (tributo cobrado sobre a venda de combustíveis), hoje da União, aos Estados.

Dois outros itens podem ser acrescentados: a devolução de parte do Pasep (tributo que o governo federal cobra dos Estados) e, no limite, se o governo se convencer de que não aprova a proposta como ela está, parte da CPMF (o chamado imposto do cheque) no que exceder a arrecadação prevista para 2004.

Rombo
Nos cálculos do deputado Paulo Bernardo (PT-PR), um dos cinco integrantes do Legislativo na comissão, se todos os pedidos dos Estados forem atendidos, a União ficará com um rombo de cerca de R$ 17 bilhões. A primeira reunião da comissão paritária foi realizada ontem mesmo. A idéia é que a "emenda dos governadores" fique pronta até terça-feira.
"Se não for suficiente, vai ter que estender o prazo. Existem bancadas que não vão votar a reforma do jeito que está", disse a governadora Rio de Janeiro, Rosinha Matheus (PMDB).

A reabertura da negociação é um novo revés para o governo na tramitação da reforma. A intenção era votar um texto básico na Câmara e deixar as negociações para o Senado. Os governadores se opuseram e até ajudaram a esvaziar a Câmara no dia anterior, para que não houvesse a votação do segundo turno da reforma da Previdência. Foi um sinal.

O temor dos Estados é que o governo assegure o que lhe interessa, a prorrogação da CPMF e da DRU (Desvinculação de Receitas da União), e deixe questões como a constitucionalização do fundo de compensações da Lei Kandir entregues à própria sorte. Por isso, querem que a proposta saia da Câmara com uma solução encaminhada. "Subscrevemos a PEC [proposta de emenda à Constituição], mas, nos termos em que saiu da comissão, não interessa aos Estados", disse o governador Marconi Perillo (PSDB-GO).

Na reunião, os governadores ameaçaram não permitir a votação do texto sem um entendimento prévio. O governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) acha que agora ocorrerá um processo semelhante ao que ocorreu na reforma da Previdência, quando os líderes partidários fizeram um acordão com as partes envolvidas, algumas vezes até contra a vontade manifesta do Planalto.

Para afastar os temores de que a reforma vai elevar a carga tributária, o governo estuda colocar na emenda aglutinativa (proposta de alteração do texto) os limites para a definição das cinco alíquotas do ICMS pelo Senado. De acordo com o relator Virgílio Guimarães, os tetos seriam de 25%, 15%, 12% e 4%. "O Senado definiria os produtos para cada alíquota."

No cronograma estabelecido para a tramitação do projeto, o 1º turno na Câmara ocorreria na quarta-feira, dia 3, e o 2º turno, no dia 16 ou 17. A proposta seria então encaminhada ao Senado, que votaria a reforma em 1º e 2º turnos até 26 ou 27 de outubro.

Há críticas legítimas, diz Palocci
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Em nova tentativa de defender a reforma tributária do bombardeio por parte de especialistas, empresários, governadores e prefeitos, o ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda) atribuiu parte das críticas ao projeto ao jogo "legítimo" de interesses de contribuintes e governantes.

Outra parte, segundo o ministro, vem de sonegadores -pessoas e empresas "que vivem no escuro", graças às condições criadas pelo sistema atual. "Quem for inimigo dessa mudança no ICMS [a unificação da legislação do imposto, principal inovação proposta] é amigo da sonegação."

O raciocínio foi desenvolvido em entrevista convocada para detalhar a defesa da reforma já ensaiada na véspera. O governo avalia que está perdendo o discurso político de apoio ao texto, já carimbado na opinião pública como uma ameaça potencial de aumento de impostos.

Esse temor, sugeriu Palocci, é exagerado pelos interessados em pressionar o Congresso a reduzir a carga tributária. Já Estados e municípios se aproveitariam do momento para reivindicar uma parcela das receitas federais. "Quem paga quer pagar menos, quem recebe quer receber mais."

A tarefa mais difícil foi explicar como será possível evitar que União, Estados e municípios usem as brechas para a elevação de sete tributos, criadas pela reforma. Palocci se valeu de uma questão conceitual: a arrecadação poderá subir, mas a carga tributária, não. Em outras palavras, impostos já vigentes hoje, em especial o ICMS, gerarão mais receita devido à menor sonegação.

Mas a principal preocupação relativa ao ICMS é outra: pelo projeto, o número de alíquotas do imposto cairá de 44 para apenas cinco, uniformes por produto, e caberá aos Estados definir o que será tributado com cada alíquota.

Palocci não pode garantir que os governadores não incluirão o maior número possível de mercadorias nas alíquotas mais altas. A resposta foi: "Houve um compromisso escrito nosso [do governo] e dos governadores de que não haverá aumento de carga".

E a proposta de estender Cofins e PIS aos produtos importados, o mais claro aumento de tributos contido na reforma? "O objetivo é aumentar a competitividade da produção nacional", que paga essas contribuições.

O ministro divulgou estudo do governo segundo o qual impostos indiretos, embutidos nos preços dos produtos, corroem quase 25% da renda disponível dos 10% mais pobres da população.

Essa é a argumentação em defesa de propostas da reforma como alíquotas progressivas do imposto sobre a herança e a criação de um programa de renda mínima.
(GUSTAVO PATÚ E VIVALDO DE SOUSA)

Ex-líder do PT vota contra no 2º turno
DA AGÊNCIA FOLHA, EM BRASÍLIA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ex-líder do PT na Câmara, o deputado Walter Pinheiro (BA) votou ontem contra a reforma da Previdência. No primeiro turno, ele e mais sete petistas optaram pela abstenção.

O deputado fez parte do chamado "Grupo dos 28", que editou um manifesto com críticas às reformas da Previdência e tributária e à condução da política econômica. Desse grupo, no entanto, só oito decidiram se abster na votação de primeiro turno, contrariando o governo e o partido. Antes da votação em primeiro turno, Pinheiro estava contrariado com a decisão do grupo pela abstenção, defendendo o voto contrário. Apesar disso, optou pela unidade.

Apesar do voto contrário, o presidente do partido, José Genoino, afirmou que a punição dos oito será a mesma. "Acho negativa a opção que ele tomou, mas vamos dispensar aos oito o mesmo tratamento, separado dos outros três [Luciana Genro, Babá e João Fontes], porque o comportamento é completamente diferente."

Para Genoino, os três, chamados de "radicais", têm feito oposição sistemática ao governo, o que não é o caso dos que optaram pela abstenção. Disse que a Executiva do PT definirá a punição.

O placar de abstenções petistas ontem foi de apenas seis, porque a deputada Maninha (DF) viajou para o Equador, em missão oficial. Na semana passada seu marido, Antônio Carlos de Andrade, foi exonerado da diretoria-executiva da Funasa em retaliação.

METAMORFOSE AMBULANTE

Deputado elogia reforma, que antes criticava

Ex-radical, Lindberg defende governo Lula
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

"Vamos calar de vez aqueles que diziam que o governo Lula seria um caos", discursou de forma exaltada o deputado Lindberg Farias (PT-RJ), 33, um dos oradores de defesa da proposta de reforma da Previdência aprovada ontem em segundo turno na Câmara.

O deputado se notabilizou nos primeiros meses do governo Luiz Inácio Lula da Silva por formar, ao lado de quatro colegas petistas, o chamado grupo radical da legenda, contrário à reforma da Previdência e à política econômica. De uns meses para cá, abandonou o grupo, negando que temesse por seu futuro político fora do PT.

"Vários motivos me levam a encaminhar a favor do governo hoje. Houve avanços no projeto em aspectos essenciais", afirmou o deputado. Ele citou como exemplos a manutenção do salário integral na aposentadoria para o atual funcionalismo e o aumento das faixas isentas de contribuição previdenciária para os inativos e de redução para as novas pensões.

Juros fazem dívida de empresas com o INSS chegar a R$ 176 bilhões
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A dívida de empresas e contribuintes com o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) alcançou R$ 176,6 bilhões em julho. Os números foram apresentados ontem ao CNPS (Conselho Nacional de Previdência Social) e correspondem a quase sete vezes o déficit previsto para este ano só com o regime de aposentadorias do setor privado -R$ 26,1 bilhões.

Em maio, o ministro Ricardo Berzoini (Previdência) divulgou o valor total da dívida que o INSS tinha a receber até 30 abril deste ano: R$ 153 bilhões. Nos três meses seguintes, o débito registrou um crescimento de R$ 23 bilhões.

O coordenador-geral de matéria tributária da Procuradoria Federal Especializada do INSS, ClaudioTerrão, explica que um dos motivos para o aumento da dívida ativa é a taxa de juros incidente sobre o valor que as empresas deixaram de recolher.

A taxa aplicada é a Selic, taxa básica de juros definida pelo Banco Central. Outro fator para o crescimento do débito é o aumento da fiscalização, que resulta em um maior volume de notificações.

Ao divulgar os dados ao CNPS, Terrão afirmou que o governo levaria cem anos para recuperar somente a dívida ativa -R$ 101,1 bilhões. Isso porque a procuradoria tem conseguido reaver cerca de R$ 1 bilhão por ano. As empresas contestam o valor da dívida apresentado pelo INSS.

Diante dos números, o CNPS formou um grupo de trabalho para estudar propostas que possam acelerar a cobrança da dívida.

O secretário-executivo do Ministério da Previdência, Álvaro Sólon, anunciou ontem que no próximo mês o governo divulgará a nova lista dos devedores do INSS. Em maio, o ministro Berzoini tornou pública a lista dos pouco mais de 176 mil devedores da Previdência.
(JULIANNA SOFIA)