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Domingo, 21 de setembro de 2003
Folha de S.Paulo
CONFLITO CASEIRO: Corregedoria
abre sindicância para apurar se houve enriquecimento ilícito
ou uso de cargos em favor de terceiros
Receita investiga 400 fiscais e "anfíbios"
LEONARDO SOUZA/DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
JOSÉ ALAN DIAS
DA REPORTAGEM LOCAL
Cerca de
400 fiscais e ex-fiscais da Receita Federal estão sendo investigados
por enriquecimento ilícito ou por suspeita de uso dos cargos em
benefício de terceiros.
Entre eles
estão funcionários apelidados pela Receita de "anfíbios"
-auditores que licenciam-se do serviço público para assessorar
empresas no campo fiscal e depois voltam para a Receita.
A convivência
de "anfíbios" e de ex-auditores com o setor privado preocupa
cada vez mais o governo, segundo apurou a Folha.
A lei não
proíbe a existência de "anfíbios" nem impõe
quarentena a fiscais que deixam o serviço público. Mas a
polêmica sobre a redução do valor de uma multa contra
a construtora OAS, da Bahia, suscitou, dentro do governo, um debate sobre
a necessidade de separar a atividade de fiscalização da
assessoria empresarial.
Entre os "anfíbios"
mais conhecidos estão Sandro Martins, ex-assistente de Everardo
Maciel, ex-secretário da Receita, e Paulo Balthazar Carneiro, ex-secretário-adjunto.
No final de
julho, a Corregedoria Geral da Receita abriu uma sindicância interna
para apurar possíveis irregularidades no trabalho de fiscalização
que gerou uma multa de R$ 1,1 bilhão à construtora OAS,
depois reduzida em 97,7% -para R$ 25 milhões.
Como sócios
numa empresa de assessoria depois de deixarem a Receita, Martins e Balthazar
defenderam a OAS no recurso que gerou a redução da multa.
A sindicância
foi aberta após o corregedor-geral da Receita, José Moacir
Leão, descobrir que o secretário da Receita, Jorge Rachid,
teria conversado sobre o assunto em seu gabinete com os dois fiscais envolvidos
no caso.
Ex-fiscal
da Receita na Bahia, Rachid foi um dos funcionários que trabalharam
na aplicação da multa à construtora, em 1994.
A SBS Consultoria
Empresarial, com sede em Brasília, é um dos exemplos de
empresa formada por funcionários aposentados ou afastados temporariamente
do serviço público.
A consultoria
iniciou as atividades em 1992, fundada por três sócios: Romeu
Salaro, Eivany Antonio da Silva e Jorge Victor Rodrigues, auditores da
Receita aposentados naquele ano. Pouco depois, segundo Silva, juntaram-se
ao grupo Balthazar e Agenor Manzano, também auditores recém-aposentados.
Pelo relato
de Silva, que foi secretário da Receita, Balthazar permaneceu na
sociedade por apenas três meses. Mas a inicial de seu segundo nome
foi mantida no nome da empresa (o "B" de "SBS').
Investigado
pela Receita, Martins também teria tido passagem pelo escritório,
segundo Rodrigues, um dos sócios. A informação, no
entanto, foi negada por Silva e Salaro. ""O Sandro e o Balthazar
são sócios nas empresas deles. O Balthazar passou por aqui;
o Sandro, não", diz Salaro. Apesar de Balthazar ter sido sócio
da SBS, a consultoria não está sob investigação
da Receita.
Silva diz
que, depois de aposentar-se do posto de auditor, em que trabalhou de 1971
a 1989, foi contratado pela consultoria norte-americana Arthur Andersen
(esta foi à falência com o escândalo da Enron), onde
ficou até 1992.
Renomado consultor
fiscal, Silva não vê impedimentos éticos no fato de
ter trabalhado para a Receita e, aposentado, prestar serviços de
consultoria tributária. ""Estou fora da Receita há
mais de dez anos. Nesse período, entrei na sede deles [no prédio
da Receita] umas quatro vezes, para visitar um ou outro amigo."
Ex-auditores não vêem restrição
ética em assessoria a setor privado
DA REPORTAGEM LOCAL
Sócios
da empresa de consultoria SBS, o ex-secretário da Receita Eivany
Silva e o ex-auditor Romeu Salaro crêem não existir impedimento
ético à atuação de ex-fiscais na assessoria
de empresas.
"Quando
um funcionário trabalha na Receita, atua com legislação
tributária", diz Salaro. Os dois foram sócios de Paulo
Balthazar Carneiro, investigado pela Receita. "Fiscais não
lidam com informações privilegiadas porque todas as mudanças
na lei passam pelo Congresso. Que informação privilegiada
eu teria que me impedisse de trabalhar para o setor privado, depois que
me aposentei?"
Salaro afirma
que seu ""único conhecimento" é a lei, ""que
ela [a lei] é a mesma para a Receita e para as empresas privadas".
Segundo o
ex-auditor, sua idoneidade pode ser ""checada" no mercado
financeiro. ""Todos no setor bancário sabem quem eu sou.
Conheço o Henrique Meirelles [presidente do BC] da época
em que ele trabalhava para banco privado. O cliente só procura
você se você é correto e competente", disse, em
conversa na sexta.
Salaro e Eivany
são profissionais qualificados. O primeiro é economista
e administrador de empresas. Tem mestrado em economia e fez aperfeiçoamento
em legislação tributária na FGV-RJ, segundo currículo
exibido na internet. Além da Receita Federal, teve passagem pela
Fazenda.
Eivany, advogado
e economista, com mestrado em direito público, fez aperfeiçoamento
em legislação tributária na Alemanha e Japão,
segundo seu currículo. De 1987 a 1991 foi membro do grupo de peritos
em tributação da ONU.
A SBS mantém
associação com outra consultoria, a Geraldo Magela &
Associados, baseada em Belo Horizonte. Em seu site na internet, o ex-auditor
Geraldo Magela Garcia apresenta suas ""credenciais". O
site informa que, após 14 anos como superintendente da Receita
em Minas Gerais, de um total de 32 anos como auditor, ""não
perdendo de vista a grande experiência acumulada, acaba de constituir
sua empresa de consultoria tributária e fiscal".
É na
página de Magela que são apresentadas ainda as referências
da SBS -que não possui endereço próprio na rede.
Segundo o
texto, a consultoria de Magela ""está apta a atender
prontamente" necessidades empresariais. ""Não somente
de interpretação de atos legais e normativos, mas também
na orientação quanto à previsão de futuras
alterações da legislação tributária
federal", diz o conteúdo.
Indagado sobre
o trecho, Magela disse: ""Quando falamos de previsão,
queremos dizer que fazemos acompanhamento dos projetos que estão
em tramitação, que podem resultar em aumento de futura carga
tributária. Não ficou bem esclarecido na página".
No escritório
da Magela & Associados trabalham dois ex-auditores da Receita, ambos
contemporâneos do proprietário. Magela explica como funciona
a parceria com a SBS. ""Atuo na primeira instância, em
Minas. Se o processo sobe para o Conselho do Contribuinte, eles (SBS),
que estão em Brasília, assumem." Quando do primeiro
contato com a Folha, dia 9, ele disse que se reservava o direito de não
revelar seus clientes.
No site de
Magela constava inicialmente uma lista que seria de clientes da SBS. Nesta
apareciam 21 grandes empresas e bancos. Na última quinta, a lista
de clientes atribuídos inicialmente à SBS foi alterada.
""A página está sendo modificada. Estamos atualizando
informações, incluindo nossos clientes, mas manteremos os
da SBS", afirmou na sexta César Augusto Garcia, filho do ex-auditor
e que trabalha no escritório.
Sobre seu
trabalho Magela afirmou, no primeiro contato com a Folha, que a ""vantagem"
de ter sido auditor da Receita é a de ""conhecer bem
a legislação". ""Muitas vezes [quando de
um auto de infração] ocorre [por parte dos fiscais] má
aplicação da legislação. Ter sido funcionário
me permite visualizar com mais facilidade se houve erro na autuação."
Cabe a Eivany
defender clientes nos casos em que, mantida as autuações
iniciais, os autuados decidem recorrer ao Conselho do Contribuinte, a
última instância na esfera administrativa. ""Não
há como influenciar a decisão do conselho (cada câmara
é formada por oito membros, quatro indicados pela Fazenda e quatro
pelos contribuintes). Mesmo se tivesse amigos lá dentro, não
poderia influenciar todo o conselho." (JAD)

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