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Sexta-feira, 03 de outubro de 2003
Folha de S.Paulo
TRUCO NA REFORMA: Projeto
é 'fatiado'; interesse de Estados e União é priorizado
Governo atropela Câmara e recria
tributária no Senado
GUSTAVO PATÚ / DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Com apoio do Planalto, o Senado organizou
ontem um ato político -do qual participaram todos os partidos da
Casa, inclusive os de oposição- para anunciar um acordo
destinado a reformular a reforma tributária aprovada pela Câmara.
Na prática, foi explicitada a intenção de "fatiar"
o projeto, aprovando neste ano só as medidas de interesse imediato
do governo e dos Estados.
Lado a lado, os líderes partidários
divulgaram, na Comissão de Constituição e Justiça,
um documento intitulado "Reforma Tributária: uma Nova Proposta",
que, de forma genérica, apresenta algumas propostas de alteração
ao projeto, basicamente com o objetivo de rearranjar a repartição
de receitas entre União, Estados e municípios.
Mas o próprio documento escancara
o destino mais provável da reforma: aprovar neste ano apenas a
prorrogação da CPMF e da DRU (Desvinculação
de Receitas da União, que permite o uso livre de 20% das receitas
federais), fundamentais para o ajuste fiscal do governo, e do fundo destinado
a cobrir as perdas estaduais e municipais com o fim do ICMS sobre as exportações.
"Pretende-se aprovar o conjunto
da proposta assegurando a DRU, a extensão da CPMF e o fundo de
compensação dos Estados e dos municípios pela desoneração
das exportações, nos moldes já acordados", diz
o 12º dos 15 parágrafos do texto.
"Moldes acordados"
Essas três medidas devem ser
aprovadas sem alterações em relação ao projeto
que veio da Câmara, "nos moldes já acordados",
o que permitiria sua promulgação imediata. Temas mais polêmicos,
que serão alterados pelo Senado, terão de voltar à
Câmara -e sua análise fica, muito provavelmente, para 2004,
quando as eleições municipais ocuparão as atenções
dos congressistas.
Apesar da clareza do documento, os
senadores trataram o assunto com evasivas, evitando o termo "fatiamento".
"Não há compromisso de aprovar a CPMF e a DRU",
disse o líder pefelista José Agripino (RN), um dos signatários
do texto que diz o contrário.
Romero Jucá (PMDB-RR), finalmente
confirmado como relator da reforma na CCJ, foi um pouco mais claro: "Vamos
promulgar o que for possível agora, e o que não for possível
volta para a Câmara. Isso não é fatiar".
Reforma "estruturante"
A palavra preferida de todos para qualificar a nova proposta de reforma
foi "estruturante". O termo, um tanto vago, foi insistentemente
repetido por Jucá, pelo líder do governo no Senado, Aloizio
Mercadante (PT-SP), pelo ministro Antonio Palocci Filho (Fazenda) e até
pelo líder do PSDB, Arthur Virgílio (AM), que até
anteontem era um dos maiores críticos do projeto.
Como "estruturantes" foram
definidas as inovações básicas sugeridas ontem, a
maior parte delas oriunda, na verdade, de negociações prévias
entre o Planalto e os governadores:
1) sai do projeto a cobrança
do ICMS no destino das mercadorias, em vez de na origem, em um prazo de
11 anos. Da mesma forma, cai o prazo de 11 anos para o fim dos atuais
benefícios fiscais estaduais. Os temas ficam para lei complementar;
2) em vez do Fundo de Desenvolvimento
Regional, que pelo texto atual da reforma aplicaria 2% da receita do IPI
e do Imposto de Renda em financiamentos nas zonas pobres, os Estados do
Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste receberão diretamente uma
parcela dos recursos do Orçamento da União. O BNDES também
destinará uma parcela maior de seus recursos a essas regiões;
3) acaba o repasse de 25% dos recursos
da Cide aos Estados e municípios. A receita da contribuição,
cobrada sobre a venda de combustíveis, será administrada
por um conselho formado por União, Estados e municípios;
4) haverá uma separação
entre os produtos tributados pelo IPI, federal, e o ICMS, estadual. Ou
seja, um mesmo produto não poderá ser tributado pelos dois
impostos. A proposta, não detalhada, foi a principal inovação
apresentada pelo Senado. Pelos estudos, o IPI incidiria sobre três
ou quatro produtos (fumo, cigarro, bebidas e combustíveis, por
exemplo).
Foi introduzido ainda um compromisso de reduzir no futuro a carga tributária,
na medida em que caia a proporção da dívida pública
em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) -essa relação,
porém, está em alta constante desde 1995.
Idéias "inovadoras"
As idéias, discutidas em duas
reuniões de líderes, uma de manhã e outra à
tarde, foram apresentadas como "inovadoras e criativas" por
Mercadante.
Falando sobre a nova proposta após
almoço com a bancada do PMDB no Senado, o ministro José
Dirceu (Casa Civil) resumiu: "Ela vai procurar compatibilizar os
fundos com os interesses regionais, mas não muda na essência
a reforma".
Mudança no Senado é "erro",
diz João Paulo
Presidente da Câmara dá a entender que deputados derrubarão
alterações dos senadores na tributária
RANIER BRAGON / DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O anúncio de que o Senado
fará uma reformulação profunda na proposta de reforma
tributária causou reação imediata na Câmara
dos Deputados, que passou cinco meses discutindo a proposta. O presidente
da Casa, João Paulo Cunha (PT-SP), declarou ontem que a reforma
aprovada na Câmara é a melhor para o Brasil.
João Paulo também considerou
um erro a possibilidade de alteração das novas regras do
ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços),
a principal fonte de recursos dos Estados e dos municípios.
"O ICMS que está lá
é bom. É muito bom para o Brasil. Acaba com a guerra fiscal.
Está errado tirar", disse João Paulo.
Ele se referia a duas questões.
A primeira é a articulação para derrubar o ponto
inserido pelos deputados que transfere, num prazo de 11 anos, parte da
arrecadação do ICMS dos Estados de origem das mercadorias
para os Estados de destino. A segunda
é a validação -também por um período
de 11 anos- de concessões, pelos Estados, de benefícios
fiscais para a atração de empresas, a chamada guerra fiscal.
O presidente da Câmara deu a
entender que possíveis alterações do Senado nas regras
de ICMS aprovadas no final do mês passado podem ser derrubadas pelos
deputados. Isso porque voltam para nova apreciação na Casa
os pontos alterados pelos senadores.
"A guerra fiscal não é
boa para ninguém. O povo brasileiro é quem perde. Querem
tirar? Não tem problema: tira. Depois a gente vai ver na Câmara
o que a gente vai fazer", afirmou.
"Revolucionária"
Indiretamente, João Paulo Cunha
criticou as declarações de Aloizio Mercadante (PT-SP), líder
do governo no Senado, que disse, pela manhã, que seriam feitas
alterações na proposta.
"Acho muito difícil [a
proposta de reforma tributária] ser mais revolucionária
do que a que saiu da Câmara. Vamos aguardar. Eu admito que existem
pessoas mais revolucionárias do que eu e do que os nossos deputados,
mas a qualidade da reforma da Câmara é boa. Acho muito difícil
mudar os pontos inseridos lá", disse.
Outro que se insurgiu contra possíveis
alterações foi o relator da proposta na Câmara, Virgílio
Guimarães (PT-MG). "Vão tirar a transição
origem/destino? Isso é revolucionário? Isso é conservador.
Revolucionário seria transferir a arrecadação para
o destino de forma mais rápida", disse.
Hoje, a maior parte da arrecadação
do ICMS fica no local de origem, beneficiando Estados como São
Paulo. "Se fizerem essa alteração, os senadores vão
ganhar um título de cidadão honorário de São
Paulo", ironizou o deputado.
O governo e os senadores procuraram
evitar um clima de confronto. "Tudo o que a Câmara fez será
aproveitado", disse o ministro José Dirceu (Casa Civil).
"A Câmara fez um grande
trabalho na reforma da Previdência, que será mantido pelo
Senado. Não há nenhum espírito de competição",
disse Mercadante.

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