quarta-feira, 16 de julho de 2003

O Globo

Reforma emperrada
Catia Seabra, Isabela Abdala, Isabel Braga e Cristiana Lôbo*
BRASÍLIA

Depois de um dia inteiro de reuniões, a falta de acordo entre governo, Congresso e governadores sobre as mudanças na proposta original da reforma da Previdência provocou ontem o adiamento, por 24 horas, da apresentação do relatório na comissão especial da Câmara. O governo, que não tem falado a mesma língua sobre as mudanças em negociação, acabou propondo aos cinco governadores que representavam as regiões do país duas opções, assumindo a possibilidade de manter, apesar da oposição da área econômica, a aposentadoria integral para os atuais servidores públicos: integralidade com paridade (os aposentados teriam os mesmos índices de reajuste dos servidores ativos) ou integralidade sem paridade.

Ficou o impasse. A decisão final agora caberá aos governadores. O governo federal não assumiu claramente se aceita ou não a paridade, que horas antes fora defendida pelos líderes da base aliada. A pedido dos governadores, a apresentação do relatório, que estava prevista para as 16h de hoje, foi adiada para amanhã.

A confusão é ainda maior porque os governadores deixaram claro que, para se chegar a um consenso sobre a reforma da Previdência, esperam compensação na reforma tributária caso tenham perda de arrecadação com as mudanças no sistema previdenciário.

— Estamos falando em tese, mas levantamos as hipóteses de integralidade com paridade e integralidade sem paridade para que os governadores façam a avaliação — disse o ministro da Previdência, Ricardo Berzoini.

Problema ficaria para os sucessores de Lula

Na reunião com os governadores, Berzoini argumentou que as mudanças dariam mais receita aos estados durante 12 anos, mas que, a partir de 2016, o déficit começaria a crescer novamente. Nas conversas, o governo chegou a acenar com a possibilidade de aumentar o limite de isenção para a taxação dos servidores púlbicos inativos de R$ 1.058 para R$ 1.300 e o teto de benefícios do INSS de R$ 2.400 para R$ 2.700. Nada, porém, ficou decidido.

O governo também assumiu a proposta de preservação integral das pensões até o limite de R$ 2.400. O que exceder esse valor será reduzido em 50%. Ao longo de todo o dia, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, chegou a dizer que a garantia de aposentadoria integral para os funcionários públicos, desde que ampliado o prazo de permanência no serviço público, representaria uma economia para o governo nos próximos nove anos.

— Dirceu disse que ficaria mais barato para a União — contou Roberto Jefferson (PTB-RJ).

À tarde, durante almoço com sete deputados do PT, Dirceu contou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que telefonava de Madri, que a tendência era manter a integralidade e a paridade para os atuais servidores. Mas que o reajuste casado de vencimentos e aposentadorias ainda dependeria dos números do Ministério da Previdência. Dirceu relatou as dificuldades da negociação, citando a resistência da CUT e dos governadores, e contou que havia pressão dos governadores para o adiamento da leitura do relatório. Lula recomendou que a apresentação fosse adiada para amanhã. Os petistas reagiram, alegando que o adiamento seria um recuo desnecessário, já que o texto ainda poderia ser modificado. O presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), e os governadores também reagiram.

— Se quiserem, podem até adiar o relatório amanhã. Mas não com a anuência dos governadores — disse Eduardo Braga (PPS-AM).

Apresentando cinco reivindicações na área tributária, entre elas, a receita da Cide e da CPMF, além da isenção do Pasep, os governadores fecharam sua estratégia de atuação numa reunião preparatória. O mineiro Aécio Neves (PSDB) sugeriu que o grupo pedisse o adiamento da leitura do relatório, condicionando seu apoio ao resultado da conversa da próxima terça-feira entre todos os governadores, Lula e o ministro da Fazenda, Antonio Palocci.

— O governo tem que aprender que só se cede no final — disse Aécio a seus interlocutores.

Antes da reunião com os representantes das regiões, Aécio foi claro:

— Qualquer mudança deve passar pelos governadores, a não ser que o governo federal ache que não precisa de parceria.

Os governadores admitiram que não terão como resistir à manutenção da aposentadoria integral dos atuais servidores.

— Se o governo não fincar o pé e nós fincarmos contra a integralidade, nós é que pagaremos o pato — disse Marconi Perillo (PSDB-GO).

Os governadores, no entanto, não esconderam o mal-estar na negociação. Segundo Perillo, “os governadores ficaram, em determinado momento, com o pincel na mão”.

— As novas propostas do governo não ferem o princípio básico da reforma da Previdência — afirmou Wilma Faria (PSB-RN).

— Essa é a opinião dela — disse Perillo.

O ministro Berzoini apresentou quatro simulações para os governadores, segundo as quais a integralidade da aposentadoria representaria uma economia para os estados durante 12 anos. Ele disse que a medida é positiva porque, além de não pagar a aposentadoria, o estado não contrata substituto para os servidores que ficam no cargo. Mas os governadores não só exigiram 25% da Cide e da CPMF, como se disseram contra a fixação de um subteto de 90,25% do salário do Supremo Tribunal Federal para o Judiciário e contra a paridade para os atuais servidores.

Apoiados por Dirceu, os governadores insistiram para que os dois relatórios fossem apresentados na semana que vem. Eles temem que, após apoiar as mudanças da previdenciária, não tivessem as reivindicações atendidas na tributária.

— Se adiarmos a apresentação, isso será uma derrota para o governo — alegou João Paulo, avisando que viajaria para a Argentina.

O presidente da Câmara insistiu ainda para que fosse apresentado um relatório preliminar da reforma tributária.

— Não existe relatório preliminar no regimento interno. Vamos fazer uma coisa só — reagiu Aécio.

Os governadores pediram também que as pensões fossem preservadas num patamar inferior aos R$ 2.400, sob a alegação de que esse valor é muito alto para o perfil dos estados. Os líderes fincaram o pé.

— Se os governadores não ficarem satisfeitos com a reforma tributária, isso vai prejudicar a reforma previdenciária — avisou o governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto.

O relator da comissão especial da reforma tributária, deputado Virgílio Guimarães (PT-MG), afirmou que não vai haver moeda de troca para a aprovação das propostas de mudança na reforma. O relator avisou ainda que amanhã vai apresentar um relatório parcial porque não foi possível fechar um entendimento com os estados sobre a repartição de tributos como a CPMF e a Cide, hoje de uso exclusivo da União.

— A reforma tributária é como uma mandala: se mexe em um pedacinho, altera tudo — disse.
(*) Do GloboNews.com

Idas e vindas sobre as mudanças na reforma confundem os governadores


BRASÍLIA e RIO. Em meio às diferentes declarações de ministros e líderes aliados do governo Lula sobre as mudanças na reforma da Previdência, com cada um fazendo um discurso diferente do outro, o governador de Minas, Aécio Neves (PSDB), admitiu ontem que, nos últimos dias, Planalto e base aliada deram a impressão de que não têm convicção sobre as reformas.

— O importante é saber até onde o governo pretende ir com elas, pois houve mudanças que abalaram a confiança — disse ele, antes do encontro no Palácio do Planalto.

Aécio ratifica a conclusão que sai das frases do alto escalão do governo ao longo da negociação das reformas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, e o ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, não concordam entre si. E, muitas vezes, desmentem o que disseram anteriormente.

Semana passada, Dirceu surpreendeu ao defender o que já achou indefensável: a aposentadoria integral dos funcionários públicos e, sobretudo, o espírito de negociação numa reforma que, para ele, era inegociável.

— O governo está aberto à negociação, desde que seja extensiva a todos os servidores públicos — disse o chefe da Casa Civil, no dia 9, inspirando o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Maurício Corrêa, a dizer que, “aberto o portão que venha todo mundo”, senha da inclusão de todo o funcionalismo na reforma da reforma.

Dirceu, antes: “Todos têm que fazer sacrifícios”

O mesmo José Dirceu, em janeiro, apresentava discurso mais contundente, que pedia o sacrifício até dos militares.

— Cada setor vai ter que fazer concessões para que nossos filhos e netos tenham uma aposentadoria — disse o ministro, pouco antes de Lula decidir pela manutenção do regime especial das Forças Armadas.

Com tantas idas e vindas, ele acabou perdendo o humor.

— E se mudei de posição, e daí? — ralhou, em maio. — Não vejo contradição. Não tenho nenhum problema de mudar de posição neste caso.

O presidente Lula também teve idas de vindas ao longo da negociação. No dia seguinte à marcha dos servidores em Brasília, ele acenou com a possibilidade de negociação.

— Acredito que não haja problema sem solução se as pessoas envolvidas se convencerem que individualmente não somos donos da verdade.

Cinco dias depois, atacou:

— Por que o cortador de cana tem que trabalhar até os 60 anos e o professor universitário se aposenta com 53? Não posso aceitar que alguém se aposente com R$ 17 mil por mês e que 40 milhões de pessoas não tenham oportunidade de trabalhar.

Até domingo, quando disse que com as mudanças negociadas — pelo seu braço direito, José Dirceu — a reforma perdia o sentido.

O ministro Berzoini tem mantido discurso mais uniforme — ainda que por vezes conflitante com vizinhos do governo.

— Muitos consideram a reforma forte. Eu diria que, se dependesse da minha opinião, seria um pouco mais forte — disse em maio.

No mês seguinte, manteve o tom, mesmo enfrentando o lobby da Justiça:

— A Constituição atual não prevê uma previdência separada para os magistrados. A nossa proposta também não e, portanto, não há qualquer entendimento nesse sentido — afirmou, com a negociação já em curso.

Dirceu diz a líderes que aposentadoria integral seria benéfica para o governo
Isabel Braga, Catia Seabra e Valderez Caetano

BRASÍLIA. Um café da manhã que reuniu o chefe da Casa civil, José Dirceu, e os líderes da base aliada na casa do presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), foi decisivo para o fechamento das propostas que o governo apresentou aos governadores sobre a reforma da Previdência. Dirceu admitiu que a garantia da aposentadoria integral seria benéfica para os cofres da União, desde que exigido maior tempo de contribuição dos servidores. Decidiu-se então que João Paulo iria à reunião da tarde com os governadores com a tarefa de avisar que aquela já era uma decisão da base aliada.

Ainda no café da manhã, Dirceu concordou com o modelo idealizado para as pensões: intactas até R$ 2.400, com redução de 50% sobre o que superar esse valor. Ele disse, no entanto, ser contra a paridade para os atuais servidores.

— A paridade engessa a política de recursos humanos do governo — afirmou.

O líder do PT, Nelson Pellegrino (BA), no entanto, foi categórico.

— A paridade dá ao governo o controle dos gastos com o pessoal. Se fosse pela inflação, o governo não teria como controlar — disse, acrescentando que, nos anos de governo Fernando Henrique Cardoso, não houve reajuste generalizado para servidor.

— Então, essa paridade é uma porcaria. Achata o salário de todo mundo — criticou Roberto Jefferson (PTB-RJ).

Dirceu disse que os governadores eram contrários à fixação do salário do desembargador do TRF para o Judiciário nos estados. Mas os líderes deram a proposta como certa.

— Então, amarrem isso muito bem no texto. Nos estados mais pobres, um desembargador chega a ganhar R$ 28 mil, R$ 30 mil — disse.

No café da manhã, o líder do PL, Valdemar da Costa Neto (SP), foi porta-voz do incômodo dos demais líderes.

— É um absurdo o governo federal ficar correndo atrás dos governadores. Os governadores é que deveriam correr atrás do governo. Por que eles não reúnem suas bancadas no Congresso e dizem os votos que têm?

Dirceu cobra posição unitária do PCdoB

Dirceu teve de administrar um mal-estar com os representantes do PCdoB e foi duro ao cobrar uma posição unitária do partido em torno da reforma da Previdência. Depois de ouvir críticas e exigências da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que concluiu um relatório sobre as audiências da comissão especial da reforma da Previdência nos estados, o ministro se dirigiu irritado ao líder do PCdoB, Inácio Arruda (BA):

— Eu preciso saber qual a posição do PCdoB, se é a da senhora (apontando para Jandira) ou a do conjunto do partido, porque eu vou ter que relatar ao presidente com quem vocês votarão.

Na saída, Arruda suavizou o puxão de orelha do ministro:

— O voto do PCdoB quem decide é o partido. Não foi uma cobrança, apenas uma sondagem.

Os líderes governistas temem que a postura da deputada Jandira Feghali contra a reforma da Previdência, a mesma da deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), comprometa a relação do governo com o PCdoB, um aliado de primeira hora.

—Tudo o que o governo não precisava neste momento era um outro Babá e outra Heloísa Helena — ironizou um petista.

A reprimenda do ministro José Dirceu não surtiu efeito. As duas deputadas do PCdoB participaram no início da tarde de um encontro de sindicalistas com líderes do PT na Câmara e o relator da reforma da Previdência, Paulo Pimentel (PT-CE). Elas não pouparam críticas à reforma: são contra a taxação dos servidores públicos inativos, a criação dos fundos de aposentadoria e as mudanças nas regras de transição. Alice Portugal foi rude com os líderes e, aos berros, cobrou:

—Vocês prometeram ir à Bahia discutir a reforma e não foram.