Domingo, 21 de setembro de 2003

O Globo

RECEITA FEDERAL VIVE DISPUTA INTERNA DE PODER

Ministro Antonio Palocci evoca para a Fazenda investigação de denúncia contra o primeiro escalão do Fisco

BRASÍLIA. A Receita Federal está rachada numa disputa política interna de grupos pelo poder. Por fora, as aparências são de que o Leão está trabalhando normalmente com as garras afiadas, batendo recordes de arrecadação e garantindo receitas para a União, mas nos bastidores, o clima é tenso. Proliferam dentro da Receita processos e mais processos de investigação sobre os integrantes da cúpula do Fisco. Nas prateleiras da sala do corregedor-geral da Receita, Moacir Leão, estão sendo empilhadas pastas e dossiês contra o primeiro escalão do órgão.

De um lado, estão integrantes do PT que não conseguiram cargos no Fisco, como reivindicavam desde o início do governo Lula. No front oposto, a equipe do ex-secretário Everardo Maciel, mantida pelo presidente da República, e que conta com a confiança do ministro da Fazenda, Antonio Palocci.

Pesadas acusações, denúncias anônimas e abertura de processos administrativos internos contra integrantes da equipe do secretário Jorge Rachid vêm alimentado a disputa. Tudo passando diretamente pela corregedoria da instituição.

Questões internas viram alvo de denúncias

Uma dessas denúncias levou o corregedor Leão a abrir um processo administrativo para investigar o secretário-adjunto Leonardo Couto, um dos auxiliares mais próximos a Rachid. A acusação é que ele teria determinado à Coordenação de Inteligência que não prestasse mais informações à Corregedoria, fato que teria sido desmentido pelo responsável da área.

O caminho tradicional para se resolver um episódio de dimensão tão reduzida seria uma simples ligação telefônica e não a abertura de um processo. Até mesmo por uma questão de respeito hierárquico, pois dentro da estrutura do órgão o cargo de corregedor está abaixo do de secretário-adjunto e este não poderia abrir processos contra seus superiores.

Preocupado com a proporção que estava tomando o caso, o ministro Antonio Palocci resolveu intervir para verificar o que está acontecendo e como vêm sendo conduzidas essas ações.

Na quinta-feira passada, foi publicada no Diário Oficial da União a portaria 234, de 15 de setembro, assinada pelo ministro, que evoca para si a investigação. O ministro determinou a criação de uma comissão de inquérito para apurar as denúncias em um prazo máximo de 60 dias prorrogáveis por outros 60.

Palocci também deu orientação expressa a Rachid que não revide as acusações para que não tomem vulto.

— A Receita Federal tem um órgão próprio para apurar irregularidades. A sociedade precisa do esclarecimento dos fatos que estão sendo veiculados na imprensa — disse Rachid.

Nas mãos do corregedor-geral há quatro processos de investigação correndo contra a equipe de Rachid; um contra o próprio secretário, dois contra secretários-adjuntos (incluindo o que investiga Couto) e outro contra dois ex-funcionários da Receita que estavam ligados diretamente ao gabinete do ex-secretário Everardo Maciel.

Corregedor diz que cumprirá mandato até o fim

Normalmente, esse tipo de processo corre em sigilo, mas inexplicavelmente foram tornados públicos. Leão descarta qualquer tipo de ingerência política em seu trabalho e afirma que está cumprindo as suas obrigações. O corregedor promete não dar trégua e avisa que seu mandato, que teve início há um ano, vai até 2005 e até lá pretende pegar um por um. Leão não pode ser demitido do seu cargo e só o deixará em três hipóteses: fim do seu mandato de três anos; ele próprio decidir sair ou se for condenado em algum processo administrativo dentro da Receita.

— Até lá (2005), os corruptos podem se preparar porque vou pegar eles todos — disse.

Em outra auditoria, a corregedoria apura o caso do fiscal Rubem Seixas Neto, que estaria investigando as denúncias envolvendo o secretário-geral da Presidência na gestão Fernando Henrique, Eduardo Jorge, há dois anos. Ele teria concluído a fiscalização sem resultados porque a Justiça não teria permitido a quebra do sigilo de Eduardo Jorge. Há algumas semanas, o funcionário, que agora trabalha na Corregedoria, afirmou que foi obrigado por seus superiores, entre eles o ex-delegado da Receita em Brasília Nilton Tadeu, a concluir o processo rapidamente.

— Tenho ampla documentação provando justamente o contrário. Enviei a ele um ofício questionando o motivo de ter concluído a operação. Eu o estou interpelando judicialmente e vou entrar na Justiça para ser compensado por danos morais — disse Nilton Tadeu.

O corregedor admite a existência de duas facções dentro da Receita, mas disse não ser favorável a esse ou aquele grupo e está apenas cumprindo suas funções. Ele afirmou que fará contra funcionários da cúpula da Receita o que faria com qualquer outro que mostrasse comportamento indevido.

— Não há briga política. O corregedor não está brigando política nem não-politicamente. O corregedor não tem nada contra ninguém — disse Leão.

Disputa teria começado com demissão de funcionário

Os próprios funcionários temem que toda essa disputa por poder manche a imagem do Fisco e da categoria de auditores fiscais.

Integrantes da Receita afirmam que a disputa começou quando o ex-chefe da Inteligência da Receita Deomar de Morais não foi confirmado para ocupar o cargo de secretário, como queriam membros do PT e do sindicato dos funcionários da Receita. Já uma outra corrente acusa Jorge Rachid de ter perseguido Deomar desde que tomou posse pelo fato de ele estar investigando, a pedido da Corregedoria, o envolvimento dos dois ex-funcionários da Receita num esquema de enriquecimento ilícito. O desfecho teria sido a exoneração de Deomar.

Deputado pede mais informações a ministro

A explicação oficial da Receita para a demissão de Deomar foi o fato de seu departamento estar trabalhando de maneira independente para vários outros órgãos do governo. Essa autonomia contrariava os planos da Receita que queria aumentar a integração da Inteligência com a coordenação de Fiscalização para acelerar as ações fiscais que vinham sendo apuradas. Além disso, em muitas vezes, as investigações conduzidas por Deomar já estariam sendo feitas pela Coordenação de Fiscalização da Receita, caracterizando uma sobreposição.

Já na Corregedoria, há quem diga que a demissão de Deomar, que já tinha entrado com seu pedido de aposentadoria, está diretamente ligada ao fato de não se querer dar prosseguimento às investigações dos ex-funcionários e de se querer reduzir o poder da Inteligência.

O deputado Chico Alencar (PT-RJ) vem acompanhando todas as denúncias e chegou a solicitar ao ministro Palocci, por intermédio do requerimento de informações 66703, detalhes sobre a exoneração de Deomar e as investigações a respeito do comportamento de Paulo Baltazar e Sandro Martins, os ex-funcionários da Receita suspeitos de enriquecimento ilícito. Para o deputado, é estranho que os processos tenham vazado.

— Pode haver interesses escusos de disputa de espaço e poder por trás disso tudo, mas é preciso apurar todas as denúncias. Parece briga de cachorro grande. A Receita Federal tem que ter procedimento exemplar e as pessoas que ocupam os cargos mais importantes têm que ter reputação intocável — disse Alencar.